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“Estado dormente voltou a gastar”, diz Fernando Rocha, da JGP

Valor econômico |04.09.2024

Para economista, mais do que afrouxamento monetário, política fiscal explica PIB forte

A composição do Produto Interno Bruto (PIB) do Brasil no segundo trimestre, puxado pela absorção doméstica, não surpreendeu, mas sua magnitude, sim, diz Fernando Rocha, economista-chefe e sócio da gestora JGP.

O PIB avançou 1,4% de abril a junho, na comparação com o primeiro trimestre, bem acima da mediana de 0,9% captada pelo Valor e da projeção já acima do consenso da JGP, de 1,1%.

A absorção doméstica engloba o consumo das famílias, o do governo e a Formação Bruta de Capital Fixo (FBCF), medida para os investimentos no PIB. O consumo das famílias e o do governo subiram 1,3% cada um no segundo trimestre, ante o primeiro, acima das expectativas medianas de 0,9% e 0,3%, respectivamente. Já a FBCF avançou2,1%, um pouco abaixo da mediana de 2,5%.

Mais do que o afrouxamento monetário, Rocha diz acreditar que a absorção doméstica, principalmente o consumo das famílias, avança pelos estímulos fiscais que vêm se acumulando desde a virada de 2022 para 2023. No caso do consumo do governo, ele observa que há uma tendência de crescimento também há algum tempo.

“O governo está ampliando os gastos com os serviços que ele proporciona. Um Estado que ficou dormente durante algum tempo voltou a gastar, a investir e a proporcionar mais serviços.”

O problema, diz Rocha, é que, apesar de a arrecadação do governo estar forte (em parte pelo próprio empurrão do PIB), as despesas crescem ainda mais. “A despesa está crescendo tão rápido que mais que compensou o crescimento da receita e gerou um resultado fiscal ruim, com aumento do endividamento.”

Leia abaixo os principais trechos da entrevista:
Valor: O resultado do PIB brasileiro no segundo trimestre surpreendeu vocês?
Fernando Rocha: Eu esperava que fosse forte e esperava também a composição que veio, de mais crescimento da absorção doméstica, isto é, do consumo das famílias, do investimento e do consumo do governo. Só que veio ainda mais forte, acho que essa foi a surpresa. O PIB está em 2,5% nos últimos quatro trimestres, e a absorção está em1,8%. Mas, se eu olhar o ano a ano, na ponta, a absorção doméstica está subindo 4,6%.Ela “passou por cima” do PIB.

Valor: As enchentes no Rio Grande do Sul não atrapalharam isso?
Rocha: Não, todo mundo esperava que fosse deletério o efeito, que fosse contribuir negativamente. Na verdade, foi uma coisa que, se aconteceu, ela foi neutralizada dentro do próprio trimestre. Quando a gente observa os dados mês a mês, vemos que teve uma moderação em maio e, em junho, devolveu. Então, foi um efeito pontual.

Valor: Que mudança na composição do PIB foi essa?
Rocha: O PIB tem duas óticas, uma da produção e outra da absorção, ou seja, de quem consumiu. No ano passado, o que puxou o PIB foi a produção da agropecuária, com aquela safra enorme, e quem absorveu foi o setor externo, mandamos para fora via exportação. Neste ano isso se inverteu, o setor agropecuário caiu, e a produção está vindo, principalmente, de serviços. A nossa indústria melhorou, mas a indústria de transformação deixa um pouco a desejar ainda. E, do lado da absorção, é o consumo das famílias.

Valor: E os investimentos?
Rocha: O investimento estava meio fraco, chegou até a ficar negativo, mas, na ponta, está bom, está acelerando.

Valor: Mas isso não ocorre também porque ele já havia caído bastante e a base de comparação ficou muito baixa?
Rocha: Eu acho um bom sinal o investimento estar crescendo, mas, se você olhar o quadro geral, por enquanto ainda é decepcionante. O acumulado em quatro trimestres ainda está negativo. A taxa de investimento sobre o PIB é muito decepcionante, está em16,6%.

Valor: Por que a composição do PIB mudou tanto entre o ano passado e este ano?
Rocha: Teve uma parte de afrouxamento monetário que ajudou, mas ele foi pequeno, o juro [Selic] caiu de 13,75% para 10,5%. Eu acho que o principal foi o componente fiscal, que demora um pouco para entrar. Mas vamos rememorar o que aconteceu. No fim de2022, com a transição do governo, foi aprovada a “PEC da Transição”, que permitiu um espaço maior para gastar. Esse gasto foi acelerando ao longo de 2023. Chegou ao fim de 2023 e teve um pagamento de precatórios bem grande, aquele estoque que tinha ficado de fora lá atrás por resolução do [então ministro da Economia] Paulo Guedes, na época do [presidente Jair] Bolsonaro. Aí, entramos em 2024 e ainda teve a antecipaçãodo 13º salário dos pensionistas e beneficiários da Previdência e o pagamento adiantado de precatórios de 2024. Vemos que boa parte desses gastos fiscais é transferência de renda para as famílias, o que entra no PIB via estímulo ao consumo. O consumo dasfamílias iniciou uma tendência em 2017, depois da recessão [de 2014-2016], decrescimento. Na pandemia, ele foi para baixo e, agora, está recuperando, voltando paraa tendência. Só que ele vai voltando com uma velocidade relativamente rápida.

Valor: Se o consumo ainda não voltou para a tendência anterior à pandemia, seu crescimento não deveria preocupar menos em termos de pressão inflacionária?
Rocha: Essa é uma pergunta pertinente. Eu diria que, se a gente tivesse mantido a capacidade de produção intacta, você teria razão. Mas eu acho que houve alguma destruição de capacidade de produção, o Brasil ficou um tempo sem investir, também durante a pandemia, e isso está custando agora. Quando olhamos o nível de utilização dos fatores de produção, trabalho e capital, vemos que estamos muito próximos do pico de utilização. Mas, como falei, quando olhamos o consumo, ainda estamos voltando para a tendência, ou seja, não era para estar no pico de utilização da capacidade. Outro sinal interessante é que, apesar de o câmbio estar super depreciado, a importação voltou acrescer bastante, indicando que não se está conseguindo produzir internamente.

Valor: O sr. citou, da absorção doméstica, o consumo das famílias e os investimentos. Mas e o consumo do governo, surpreendeu no segundo trimestre?
Rocha: O consumo do governo no PIB são os serviços que ele proporciona e que não são medidos a preços de mercado, porque muitas vezes são gratuitos, como educação pública e saúde. Eles [IBGE] medem, por exemplo, a quantidade de internações no SUS, o número de alunos matriculados nas escolas. O investimento público entra se o governo faz, por exemplo, uma estrada. O que não entra são as transferências para famílias e gastos com Previdência, que podem aparecer no PIB pelo efeito no consumo das famílias. A participação do consumo do governo é mais ou menos 20% do PIB. A carga tributária é 33%, 34%. Então, uma parte do que o governo arrecada de impostos, ele transfere para famílias e outra parte ele investe ou gasta em serviços de educação, saúde, segurança. Parece que há uma tendência de crescimento do consumo do governo. Ele vinha em um processo de crescimento de 2010 até 2014. Teve o impeachment da Dilma [Rousseff], veio o governo [de Michel] Temer, [o início do governo] Bolsonaro e ele ficou de lado. Aí, caiu na pandemia, tem a volta, mas, a partir de 2022, há uma tendência de acelerar em 2023 e daí em diante. O governo está ampliando os gastos com os serviços que ele proporciona. Um Estado que ficou dormente durante algum tempo voltou a gastar, a investir e a proporcionar mais serviços.

Valor: O PIB mais forte ajuda a arrecadação, mas tem espaço fiscal para essa “volta” do Estado?
Rocha: A receita está super forte, isso é indiscutível, apesar de não ter vindo toda a arrecadação extra que o [ministro da Fazenda, Fernando] Haddad queria. A receita nominal está crescendo mais que o PIB. A receita em proporção ao PIB chegou a um pico de 23% em 2022, depois caiu e agora voltou a subir. O problema é quando você olha a despesa, que está mais forte ainda que a receita. E quando você olha a dívida, ela está subindo em uma velocidade rápida, quase sete pontos em um ano e meio. Em resumo, na parte fiscal, apesar de a atividade estar bem, a despesa está crescendo tão rápido que mais que compensou o crescimento da receita e gerou um resultado fiscal ruim, com aumento do endividamento. E a consequência do PIB é aquela: vemos o governo crescendo e o consumo das famílias crescendo via transferências do governo.

Valor: Como fica a atuação do Banco Central em meio a esse cenário de fiscal e PIB fortes?
Rocha: Não é que o BC não goste de crescimento, todo mundo gosta. O problema é essa composição. Se estivesse vindo de fora, com a gente produzindo e exportando, não teria muita preocupação do ponto de vista de inflação. Mas como o crescimento está vindo de dentro, com a gente consumindo muito internamente e pressionando os fatores de produção, começamos a observar sinais de que está excessivo.

Valor: Diante disso, como acha que será a decisão do Comitê de Política Monetária(Copom) do BC na próxima reunião?
Rocha: Essa pergunta está difícil, porque a comunicação deles ficou meio errática. Eu acho que eles teriam de subir os juros, acho que eles vão subir. Agora, tem um pouco de dúvida, porque os discursos pareceram um pouco diferentes entre os membros, principalmente entre o [Gabriel] Galípolo [diretor de política monetária e indicado de Lula para assumir o BC] e o Roberto Campos Neto [atual presidente do BC]. A meu ver, o Roberto Campos se esforçou para passar uma imagem de que ele não está com essa urgência toda de subir juros, de que, sim, a inflação preocupa, a atividade está forte, mas acho que ele dá um peso grande ao cenário externo, ao fato de os Estados Unidos estarem desacelerando [em termos de atividade], de estarem [em breve] cortando juros e qual o efeito que isso vai ter nos ativos, no câmbio. Na fala dele no evento da XP, ele foi explícito, falou que a curva curta está errada de precificar um aumento de 50 pontos-base [0,50 ponto percentual (p.p)]. Passou a impressão de que ele estava com a cabeça de 0 a 25 pontos-base [0,25 p.p.]. Já o Galípolo passou uma urgência maior, mas eu não sei se isso significa que ele vai votar por 50 pontos-base. Acho que eles vão dar 25pontos e procurar uma unanimidade, porque ter divisão agora não seria muito legal, dado que todo mundo está olhando para a credibilidade. O problema de começar com 50pontos-base é que, nesses ciclos, você nunca sabe quando vai poder parar. Acho que tem certa inconsistência entre economistas que falam que vai subir 100, 150 pontos-base e já cortar. No meu cenário-base, eu tenho [uma alta total de] 200 pontos-base [2p.p.], com 25, 25 e depois três de 50.


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