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MídiaDívida ESG tem boom no país – mas qualidade é ponto de atenção
Alta dos juros e incertezas políticas podem frear o entusiasmo; benefícios de sustentabilidade também devem ser alvo de mais escrutínio
— Por Vanessa Adachi
O volume de dívidas com apelo sustentável teve um boom no Brasil no ano passado. Foram 109 operações rotuladas com algum tipo de selo ESG, num volume financeiro de R$ 84,5 bilhões. Em 2020 haviam sido 43 operações, totalizando R$ 30 bi.
O volume total, compilado pela Sitawi, abriga operações de naturezas diversas: empréstimos e operações no mercado de capitais, de instrumentos variados, feitas no exterior e no mercado local.
Apesar do crescimento forte, as operações ESG ainda representam uma pequena fatia do bolo total do crédito, especialmente no mercado doméstico – e ainda existem dúvidas importantes sobre a qualidade do que é efetivamente entregue em termos de sustentabilidade.
Dos R$ 84 bi, R$ 26,6 bilhões foram levantados em operações sustentáveis no mercado local, cifra que representa apenas 10% de todo o dinheiro captado via dívida apenas no mercado de capitais doméstico em 2021 (ou seja, sem contar empréstimos bancários, que cobrem um universo muito maior).
Seja como for, a julgar pelos números dos primeiros dias de 2022, o novo ano também parece promissor para as dívidas com apelo ESG.
A primeira captação externa do ano, anunciada pelo Banco do Brasil, saiu com carimbo ESG; e, das quatro operações fechadas até agora, três tiveram selo sustentável – além de BB, também Bradesco e Grupo Globo, num total de US$ 1,4 bi.
A operação do BB trouxe uma novidade: foi a primeira vez que um grande banco brasileiro fez uma emissão de um social bond. Foram US$ 500 milhões de funding com prazo de 7 anos para conceder empréstimos com benefícios sociais, como microcrédito, financiamento a pequenos produtores rurais, crédito para pessoas com deficiência, habitação para população de baixa renda, entre outros.
Mas é difícil fazer previsões para 2022, ainda mais num cenário de taxa de juros em alta no Brasil e no mundo.
No Itaú, um dos bancos mais ativos em emissões ESG, com 43 operações locais e externas em 2021, os profissionais evitam fazer projeções. “Tudo vai depender da condição do mercado em ano eleitoral. Operações engatilhadas podem não sair”, diz Luiza Vasconcellos, especialista ESG na área de renda fixa do Itaú BBA.
Lá fora, analistas ouvidos pela Environmental Finance, respeitada publicação de finanças sustentáveis, estimam que as emissões globais de bônus sustentáveis podem chegar a US$ 1,5 trilhão em 2022 – ante os cerca de US$ 1 tri de 2021.
Com ou sem carimbo?
Existem essencialmente dois tipos de dívidas sustentáveis. Os chamados green bonds são aqueles em que os recursos captados são carimbados. Ou seja, se destinam a financiar algum projeto específico. O mesmo se aplica aos social bonds.
O irmão mais novo dos green bonds é o sustainability-linked bond. Neste caso, o dinheiro não é direcionado a projetos específicos, mas a taxa de juro é atrelada a metas de desempenho das empresas em indicadores ambientais, sociais ou de governança. Se a empresa falha em cumpri-las, paga uma penalidade na forma de taxa de juro mais alta.
Embora seja um tipo mais novo de dívida sustentável, os SLB (e também os sustainability-linked loans) caíram rápido no gosto dos emissores, justamente pela flexibilidade no uso dos recursos. “Costumamos dizer que eles são os queridinhos das tesourarias das empresas”, diz Luiza Vasconcellos.
Em 2021, essas emissões por desempenho ganharam tração, principalmente entre as grandes empresas. Com isso, responderam por 68% do volume total no Brasil, embora tenham representado apenas 36% do número de transações.
Tendências
A aposta de especialistas é que os SLBs sigam dominando os volumes em 2022. Mas o cenário de aperto monetário deve impor alguns desafios.
“Num momento com perspectiva de alta de juros, fica mais difícil fazer SLB. Para torná-los atraente para os investidores, especialmente no Brasil, vai ser preciso colocar uma penalidade de taxa mais alta”, diz Gabriel Fidalgo, responsável pela análise ESG da Plural Asset, completando que as empresas devem resistir a isso, especialmente porque os papéis são de longo prazo.
Outra tendência é que os empréstimos bilaterais – e também multilaterais – ganhem mais espaço no ano, rivalizando com as emissões no mercado de capitais. “Não só por uma questão conjuntural – porque quando o mercado está volátil o crédito bancário ganha espaço –, mas também por um aspecto estrutural: os bancos aprenderam a fazer dívida ESG e colocaram isso nas suas prateleiras”, diz Gustavo Pimentel, diretor executivo da Sitawi.
A tendência é que o crescimento dos empréstimos bancários coloque empresas de menor porte no jogo da dívida sustentável, diz Pimentel.
A visão é compartilhada no Itaú. “Ao todo, fizemos 510 operações de mercado de capitais no Itaú BBA em 2021, mas temos 30 mil empresas clientes, e a maioria não acessa o mercado de capitais. Veremos cada vez mais operações ESG, e mais: elas serão a maioria”, diz Felipe Wilberg, diretor de renda fixa do banco.
Qualidade é ponto de atenção
Se o crescimento das dívidas com critérios ESG é uma boa notícia à primeira vista, o movimento vem acompanhado de um grande ponto de atenção (especialmente nas operações atreladas a desempenho): a qualidade dos indicadores e das metas que lastreiam esses papéis.
Esse é um tema que tem provocado polêmica também no mercado internacional, com operações sendo contestadas por investidores e algumas empresas, no limite, sendo levadas a desistir do selo ESG em meio à controvérsia.
O ponto que investidores questionam é se os indicadores escolhidos são relevantes para o negócio da empresa (materialidade) e se as metas são ambiciosas o bastante (adicionalidade).
A lógica por trás de um crédito atrelado a metas ESG é financiar a transição para uma economia mais sustentável. Mas, para isso, é preciso que os indicadores e metas escolhidos realmente tragam avanços ambientais e sociais.
“Tem muita gente que escolheu metas sem relevância para o seu negócio. Tem empresa que se compromete a reduzir o consumo de energia sem que isso seja importante na sua operação. O mercado está se depurando, no sentido de olhar se o tema é relevante para a empresa”, diz Marcelo Bacci, CFO da fabricante de celulose Suzano.
No mercado brasileiro, algumas emissões de SLB atraíram críticas dessa natureza em 2020, como uma da Via Varejo e outra da JBS. A gestora JGP tem sido vocal em alertar sobre esse tipo de risco.
“O ESG se tornou moda no ano passado e as empresas estão fazendo o básico e testando o que é ESG para os investidores, tentando entender o que o mercado quer”, diz Gabriel Fidalgo, da Plural. “Este ano vai ser o dos feedbacks. Para alguns investidores, medir emissão de carbono será suficiente em qualquer setor, mas a tendência é que os investidores enxerguem valor em metas mais relevantes para cada negócio.”
Emissão ‘global’
Um dos primeiros sustainability-linked bonds do ano, o da Globo, já causou discussão.
A companhia se comprometeu a cortar suas emissões de gases de efeito estufa em termos absolutos em 15% até 2026 e 30% até 2030. “Do ponto de vista técnico, as metas são bem construídas”, diz José Pugas, sócio da JGP responsável por ESG, referindo-se ao fato de a meta de redução incluir quase toda a cadeia de valor da Globo (o chamado escopo 3) e ser alinhada a critérios científicos.
“Mas precisamos olhar a big picture. Os indicadores ambientais não são os mais relevantes para a empresa.”
A analista ESG da JGP, Isadora Valle, destaca que a própria matriz de materialidade publicada pelo grupo mostra que aspectos sociais (assédio e discriminação, diversidade e saúde e bem-estar dos funcionários) e de governança (corrupção e integridade) são considerados mais relevantes para o negócio.
De fato, o setor de mídia não é intensivo em carbono. Nas contas de Valle, se cumprida a meta de 2030, o corte nas emissões do grupo Globo equivalerá à retirada de 986 carros de circulação.
A Globo não comentou.
O selo do SLB foi confirmado pelo parecer de segunda opinião da Sustainalytics, que pertence à Morningstar. Em nota ao Reset, o diretor associado de soluções corporativas da Sustainalytics, Mayur Mukati, disse que, “devido à urgência de agir sobre as mudanças climáticas de todos os setores/indústria globais, consideramos as emissões de GEE relevantes, mesmo que não sejam as mais relevantes para determinados setores.”
Ele destaca o fato de a consultoria ter sido transparente em relação ao fato de o KPI escolhido não abranger as questões ESG centrais para o setor de atuação da Globo.
“Ainda assim, a Sustainalytics considera o KPI relevante para a Globo, dado seu escopo e o potencial impacto de suas iniciativas para ajudar a mitigar as mudanças climáticas no Brasil”, completou ele.
Rodrigo Tavares, CEO do Granito Group, que presta consultoria em ESG, diz que, embora os Sustainability-Linked Bond Principles (o instrumento de autorregulação do mercado para esse tipo de emissão) falem em materialidade, tudo é bastante subjetivo. “Caberia aos bancos de investimento fazer a primeira avaliação da relevância das metas.”
No caso do bônus da Globo, o Itaú BBA atuou como um dos coordenadores da oferta e também como o assessor ESG da operação, mas o banco não comenta casos específicos de clientes.
Sobre o papel dos bancos nesse tipo de emissão, Vasconcellos diz que “o dever do banco estruturador é dar transparência às informações, e o investidor toma a sua decisão”. “Temos um mercado em desenvolvimento e nesse processo é natural que venham emissões mais fortes e outras menos, a depender da maturidade dos emissores em ESG.”
Pelas contas da JGP, a emissão da Globo não trouxe o chamado ‘greenium’, ou prêmio verde, à empresa, o que seria um indicativo de que a falta de materialidade da meta se refletiu no apetite de investidores.
“Quando comparamos o bônus da Globo com a média de emissores de mesmo rating com bônus de prazo equivalente, observamos que o papel pagou um adicional de taxa”, diz Nikolau Müller, sócio e analista de crédito da gestora. Ou seja, não só não houve um prêmio verde pelo compromisso, como a empresa ainda pagou mais que a média de emissores de risco semelhante.
Greenwash
“Em 2022, existe o risco de o greenwash aumentar. O ano passado já teve muitas operações controversas, com pouca adicionalidade ambiental e social, mas o mercado brasileiro reclama pouco, ainda não tem essa complexidade”, diz Pimentel, da Sitawi.
Marcelo Bacci, da Suzano, diz que a diferença entre as interações com investidores estrangeiros e locais é gritante. “Eu sinto que os investidores estrangeiros estão se tornando mais criteriosos e questionando os KPIs das ofertas”, diz, ponderando, no entanto, que a liquidez abundante do mercado ainda assim permite que as captações sejam realizadas.
“Mas o investidor local nunca olhou de fato com a seriedade que deveria. Quer o selo, mas não paga por isso. É um ‘me engana que eu gosto’ que não traz benefícios para nenhum dos lados”, completa o CFO. A Suzano emitiu um título verde no mercado local há alguns anos e não voltou mais. Nos dois últimos anos, seus SLBs foram colocados no exterior, com ‘greeniums’ significativos.
Para Fidalgo, da Plural, a maior prova de que o investidor local ainda só olha para retorno foi a emissão de debêntures da Camil, em novembro.
A companhia emitiu duas séries idênticas do papel, com a diferença que uma tinha o selo verde e a outra não; e a empresa propunha uma taxa um pouco mais alta na tranche sem o selo. O resultado é que a demanda dos investidores foi maior na série de maior taxa, sem o carimbo da sustentabilidade.
“O mercado ainda está mais preocupado com rentabilidade. Isso só vai mudar quando os tubarões do mercado, os fundos de pensão, vierem.”
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