Comunicação
MídiaO desafio é ser responsável: Novo Mercado passa por processo de revisão
Iniciativas com foco em critérios sociais, ambientais e de governança avançam na bolsa, mas o Brasil ainda precisa fazer muito mais nessa área
No mercado financeiro, as pautas voltadas para o aumento de práticas ambientais, sociais e de governança corporativa — conhecidas pela sigla, em inglês — crescem a cada ano. Incorporado pelas empresas, o tema vem ganhando espaço no debate público, mas o Brasil ainda precisa evoluir para chegar aos mais altos padrões globais e mostrar que está preparado para lidar com as novas demandas de investimento responsável. Uma das principais iniciativas da B3 em torno da pauta ESG, o Novo Mercado, segmento de listagem que reúne ações de companhias com os mais altos níveis de governança corporativa, está desgastado e passará agora por um novo processo de revisão — o quarto após as reformas de 2006, 2011 e 2018.
A nova proposta em debate para o Novo Mercado estabelece que o selo de uma empresa poderá ser colocado em revisão caso ela apresente erros em demonstrações financeiras ou suspeitas de fraude. O texto também endurece as regras de composição de conselhos, exigindo que um nome se dedique a, no máximo, cinco conselhos de administração de companhias abertas e que ao menos 30% dos conselheiros sejam independentes, ou seja, desvinculados dos acionistas controladores. Após dez anos de atuação na mesma empresa, um conselheiro deixaria de ser considerado independente.
Atualmente em consulta pública, a proposta final de revisão do Novo Mercado será votada pelas próprias empresas listadas no segmento e dependerá da chancela da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), o xerife do mercado de capitais. “É um esforço bastante válido e as companhias estão interessadas em participar da discussão”, diz André Camargo, conselheiro de governança corporativa na Tauil & Chequer Advogados. “Subindo o nível de exigência, é possível melhorar o sistema de governança, mas também pode afastar as empresas se os custos aumentarem demais”.
Lançado em 2000 e atualmente com 192 empresas, o Novo Mercado impõe uma série de regras especiais, como a criação de áreas de compliance e auditoria interna, o uso da dispersão acionária — ou seja, a oferta de ações a investidores pessoa física — e a emissão apenas de papéis ordinários (ON), que dão direito a voto nas assembleias. Na prática, porém, o Novo Mercado foi palco de diversos escândalos corporativos que abalaram sua credibilidade.
O episódio mais recente é também o mais emblemático: protagonista da maior fraude contábil do país, que deixou um rombo de 25,2 bilhões de reais no caixa da companhia, a varejista Americanas fazia parte do Novo Mercado até o ano passado. Após investigação interna, foi revelada a participação de ex-diretores e do ex-presidente, Miguel Gutierrez, no esquema para inflar artificialmente os lucros nos balanços. Em novembro do ano passado, a B3 decidiu suspender a Americanas do Novo Mercado por tempo indeterminado e aplicou multas para os integrantes da diretoria, do conselho de administração e do comitê de auditoria. Essa foi a primeira vez que a bolsa excluiu uma empresa do segmento.
Bem antes do caso Americanas, porém, outras violações já desafiavam a reputação do Novo Mercado. O grupo EBX, de Eike Batista, chegou a ter suas seis companhias listadas no segmento — incluindo a petroleira OGX, acusada de superestimar suas reservas de petróleo e expectativas de lucros ao mercado. Em 2017, Eike foi preso durante a Lava Jato, acusado de corrupção ativa, lavagem de dinheiro e organização criminosa. “O Novo Mercado perdeu seu valor”, afirma Alexandre Di Miceli, fundador da empresa de educação executiva Virtuous Company Educação e especialista em governança e ética corporativa. “No início dos anos 2000, mostrar que fazia parte do Novo Mercado dava credibilidade para as empresas, mas uma série de escândalos corroeu a percepção do mercado.”
Não é só o Novo Mercado que vem passando pelo escrutínio dos investidores. Iniciativas como índices de sustentabilidade e selos verdes também são vistas como tentativas positivas de avançar na agenda ESG, mas precisarão ser testadas. “Precisamos achar uma forma de lidar com problemas complexos de governança, não existem soluções simples”, afirma Fabio Alperowitch, fundador da gestora Fama Re.Capital. Uma das maiores dificuldades está em evitar que as empresas apenas adotem uma lista de checagem de critérios e passem a incorporar, de fato, as melhores práticas sustentáveis no seu dia a dia, desde a decisão de investimentos até a composição do quadro de funcionários.
A mineradora Vale é um caso simbólico que ilustra a complexidade do assunto. Integrante do Novo Mercado desde 2017 e dona de iniciativas como a preservação de áreas florestais, a empresa esteve no centro de dois dos maiores desastres ambientais do Brasil. O mais recente deles foi o rompimento, em 2019, da sua barragem em Brumadinho (MG), que provocou 272 mortes. Relatórios indicaram que os executivos da Vale estavam cientes dos riscos da estrutura. Após o ocorrido, a mineradora foi retirada do Índice de Sustentabilidade Empresarial (ISE), que engloba empresas consideradas sustentáveis, mas mantida no Novo Mercado, já que cumpre formalmente os requisitos de governança exigidos.
Além do ISE, a B3 tem hoje outros mecanismos de distinção de empresas comprometidas — ao menos no papel — com critérios ESG. Entre eles está o Idiversa, com companhias que atendem a regras de diversidade, e o Índice Carbono Eficiente (ICO2), que inclui as adotantes de práticas de redução de emissões de gases do efeito estufa. Há ainda o recém-lançado selo Ações Verdes, feito para distinguir empresas que contribuam para a proteção do meio ambiente. A companhia de saneamento paulista, Sabesp, foi a primeira — e, por ora, a única — a receber o reconhecimento, por operar com fontes renováveis de energia. “Para ser efetivo, o novo selo terá de ser mais criterioso do que as outras medidas”, afirma Alperowitch.
O fato de o mercado brasileiro ser menos desenvolvido é citado como um dos maiores empecilhos para a exigência de critérios ESG nos investimentos, mas gestores que se dedicam ao assunto defendem que é possível separar o joio do trigo mesmo no estágio atual. Segundo José Pugas, sócio e chefe de ESG na gestora JGP, muitos avanços regulatórios foram feitos, como a discussão de uma taxonomia sustentável no Brasil, iniciativa capitaneada pelo Ministério da Fazenda e que cria um sistema de classificação de ativos ESG a partir de definições nítidas, objetivas e com base científica. A meta é lançar o texto ainda em 2024 para a adoção obrigatória a partir de 2026. “Estamos fazendo o dever de casa, mesmo que ainda falte muito para ser cumprido”, diz Pugas.
Na visão da B3, o avanço da agenda ESG acontecerá conforme se der o amadurecimento das próprias empresas e a melhora dos processos de fiscalização pelos participantes do mercado, desde auditores externos até investidores e órgãos reguladores. “É possível praticar ESG, e muitas empresas já fazem isso”, afirma Ana Buchaim, diretora-executiva de Sustentabilidade, Pessoas, Marketing e Comunicação da B3. “Precisamos ter recorrência e transparência de dados.” O mercado brasileiro já deu os primeiros passos nos investimentos responsáveis, mas apenas o futuro dirá se o país é capaz de evitar novos retrocessos nesse campo.